Além do Sistema conta a história do Responsa

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Karine Vieira em depoimento à Marie Claire

“Passei 15 anos no mundo do crime, e hoje tenho uma ONG para empregar ex-detentos”

A assistente social Karine Vieira, 38 anos, começou a cometer delitos aos 14 anos. Parou por um período ao dar à luz a primeira filha, aos 17, mas acabou voltando para o crime. Tornou-se traficante e foi presa aos 24. Quando saiu da cadeia, começou a se corresponder com outro detento, e teve outro filho. O nascimento do menino fez com que ela quisesse mudar de vida. Começou a trabalhar e voltou a estudar. Teve mais um filho com o companheiro, ainda encarcerado. Assim que terminou a faculdade de Assistência Social, passou a atuar com jovens que cumpriam medidas socioeducativas e logo estava trabalhando para conseguir emprego para ex-detentos. Em 2017, criou seu próprio projeto de inserção de ex-presos no mercado de trabalho, que em 2018 se tornou a ONG Responsa, onde ela atua e que já conseguiu emprego para mais de 400 pessoas. Karine é um dos nomes da campanha Sócios da Liberdade, do Instituto Igarapé, que incentiva a contratação de mulheres presas ou egressas do sistema prisional.

“Nasci em uma família de classe média, em São Paulo. Meu pai era bacharel em direito, mas trabalhava com venda de peças microprojetadas para indústria e minha mãe era enfermeira. Vivíamos nós e eu meu irmão,
dois anos mais novo, na Zona Leste de São Paulo. Tive uma infância tranquila até os quatro anos, quando meus pais se separam e nunca mais pararam de brigar.

Até os 12 anos, minha vida era da escola para casa e da casa para a escola. E aí fui morar num condomínio entre a Vila Antonieta e o Jardim Aricanduva, o Jardim Vila Formosa. Atrás do meu prédio, tinha duas comunidades e a maioria dos meus amigos eram de lá.

Eu tinha muita responsabilidade, cuidava do meu irmão e da casa. Minha mãe tinha três empregos e sempre prendeu muito a gente. Morria de medo dela e ansiava por liberdade. Então, vivia na rua.

Alguns dos meus amigos mais próximos, tanto de classe média como da favela, já cometiam delitos. E, quando você passa a fazer parte de um grupo na adolescência, sente a necessidade pertencer àquele grupo. Quando me dei conta, tinha 14 anos e havia adotado a mesma postura que eles. Nessa fase, eu já tinha repetido um ano e meu pai havia me tirrado da escola particular e me mandado para a estadual. Até o primeiro ano do ensino médio, quando parei de estudar.

Comecei com pequenos delitos e logo comecei a furtar carros, roubar, invadir agências bancárias. Aos 16 anos, saí de casa. Nessa época, engravidei do meu namorado, que trabalhava. E, aos poucos, por conta da gestação, fui
saindo do mundo do crime. Quando minha filha nasceu, fui morar com o pai dela. Ela tinha lábio leporino e teve que fazer umas cirurgias ainda pequenininha.

Aos 18 anos, consegui um emprego na Varig, a extinta empresa de aviação. Nesse período, meu marido começou a usar drogas e me separei. Até tentamos voltar, mas não deu certo. Nessa segunda separação, comecei a ir às baladas de novo com meus amigos. Várias vezes, chegava de madrugada e não ia trabalhar no dia seguinte.
Como tinha muitas faltas, rodei no primeiro corte assim que a companhia foi vendida. Ao mesmo tempo, minha mãe precisou voltar para a casa que havia me cedido e, como não queria mais morar com ela, fiquei sem teto.
Pulava de casa de amigo em casa de amigo e acabei voltando para o crime.

Em 2005, aos 24 anos, eu fui presa por um B.O. que não era meu. Fui acusada de tráfico e associação. Eu cometia crimes, era traficante, mas a droga em questão não era minha, nem sabia da existência dela. Fiquei cinco meses detida, e voltei para o crime de novo. Naquele mesmo ano, um amigo me falou de um conhecido que estava detido e começamos a nos corresponder. Depois de três meses, já interessados um no outro, resolvi conhecê-lo pessoalmente. No ano seguinte, 2007, nasceu nosso filho, Ryan.

Em 2008, comecei a passar por um processo de transformação, de resgate, reflexão e a pensar no que eu estava deixando de legado para o meu filho. Pensava no quanto já havia visto amigos morrendo e tudo mais. Mas, depois de 15 anos no crime, eu já não lembrava mais o que eu sabia fazer fora daquela vida. Minha primeira decisão foi voltar para a escola. Fiz a matrícula no supletivo no final do ano e comecei a estudar em 2009.

Na mesma época, consegui um emprego em uma papelaria do meu bairro. Era para ser de um mês, mas acabou durando um ano e três meses. E o mais interessante foi que ele me ajudou muito no meu resgate de valores. Ganhava R$ 25 por dia, mas era um dinheiro que me trazia paz.

No meio de 2009, prestei o Enem e não só passei como consegui uma bolsa de estudos integral. Estava em dúvida se fazia Direito, mas optei por Serviço Social para junto a pessoas egressas do sistema prisional, era o meu objetivo naquela época.

Em março daquele ano, fui fazer uma entrevista em um leiloeiro. Não passei na segunda parte do processo
seletivo deles, porque eles estavam procurando alguém que morasse mais perto. Um mês depois, no entanto, eles me indicaram para uma administradora judicial de grandes casos e fui contratada. Fiquei trabalhando como secretária durante quatro anos, sem meu chefe nunca ter perguntado nada sobre minha vida pregressa. Sei que o fato de eu ter um perfil que normalmente não é associado à população carcerária (sou branca e minha família, de classe média) facilitou. Acho que até no mundo do crime facilitava. Porque isso fazia com que eu pudesse andar
por territórios sem correr o risco de ser enquadrada pela polícia, que, normalmente, não suspeitava de mim.

Quando terminei a faculdade, já com mais um filho, saí do emprego no escritório. Queria atuar na minha área de formação. Depois, fui indicada para em um núcleo que atendia vítimas de violência doméstica e mulheres, e acabei contratada no núcleo de medidas socioeducativas. Atuei no acompanhamento de adolescentes que estavam em liberdade assistida e prestando serviços à comunidade por quase dois anos.

Nesse período, conheci um coordenador do projeto Segunda Chance, do AfroReggae. A ideia era ajudar ex-detentos a encontrar trabalho. Mas ele acabou indo embora e eu assumi a coordenação do projeto. Fiquei lá até dezembro de 2016, quando o escritório de São Paulo fechou.

Eu já estava empreendendo, fazendo trabalhos por fora, prestando serviços para outras organizações e empresas, e continuava fazendo no Segunda Chance. Quando o escritório fechou, pedi autorização deles para atuar voluntariamente, continuar atendendo as pessoas que me procuravam.

Segui sendo voluntária no Segunda Chance até que, no meio de 2017, conheci o pessoal do Instituto Ação Pela Paz. Ali, nasceu a ideia do Responsa, com um programa chamado Recriar e Inserir. Para criá-lo, tirei muito da minha história de vida. Quando você fala em inserção no mercado, é literalmente o primeiro emprego mesmo. Porque a maioria das pessoas que saem do sistema prisional nunca teve trabalho sem ser na rua.

O Responsa surgiu efetivamente em novembro de 2017. Nós nos oficializamos enquanto instituição em abril de 2018. Hoje, a gente já colocou no mercado mais de 150 pessoas, e em vagas de freelancer mais de 250. Isso contabilizando de abril 2018 para cá, não estou nem contando o período em que a gente era só projeto.

Hoje digo que existem duas coisas que são minha vida, meu sentido diário: meus filhos e o Responsa, que é um filho também. Cada vez que vejo uma conquista de alguém que atendo, vibro como se fosse comigo. Não tem dinheiro que pague assistir a essas transformações de vida.”